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segunda-feira, 21 de março de 2011

PONTUAÇÃO

PONTUAÇÃO
(Celso Cunha )
 
I - Introdução: sinais pausais e sinais melódicos
A língua escrita não dispõe dos inumeráveis recursos rítmicos e melódicos da língua falada. Para suprir esta carência, ou melhor, para reconstituir aproximadamente o movimento vivo da elocução oral, serve-se da PONTUAÇÃO.
Os sinais de pontuação podem ser classificados em dois grupos:
O primeiro grupo compreende os sinais que, fundamentalmente, se destinam a marcar as PAUSAS:
a) a VÍRGULA (,)
b) o PONTO (.)
c) o PONTO-E-VÍRGULA (;)
O segundo grupo abarca os sinais cuja função essencial é marcar a MELODIA, a ENTONAÇÃO:
a) os DOIS PONTOS (:)
b) o PONTO DE INTERROGAÇÃO (?)
c) o PONTO DE EXCLAMAÇÃO (!)
d) as RETICÊNCIAS (...)
e) as ASPAS (" ")
f) os PARÊNTESES ( ( ) )
g) os COLCHETES ( [ ] )
h) o TRAVESSÃO (--)

II - Sinais que marcam sobretudo a pausa

1. a VÍRGULA (,)
A VÍRGULA marca uma pausa de pequena duração. Emprega-se não só para separar elementos de uma oração, mas também orações de um só período.

1.1. Emprego da vírgula no interior da oração
No INTERIOR DA ORAÇÃO a vírgula serve
1º) Para separar elementos que exercem a mesma função sintática (sujeito composto, complementos, adjuntos), quando não vêm unidos pelas conjunções e, ou e nem.
Exemplos:
As nuvens, as folhas, os ventos não são deste mundo. (A. MAYER)
Ela tem sua claridade, seus caminhos, suas escadas, seus andaimes.(C. MEIRELES)
2º) Para separar elementos que exercem funções sintáticas diversas, geralmente com a finalidade de realçá-los. Em particular, a VÍRGULA é usada:
a) para isolar o aposto, ou qualquer elemento de valor meramente explicativo: Ele, o pai, é um mágico. ( ADONIAS FILHO)
b) para isolar o vocativo: Moço, sertanejo não se doma no brejo. (J. A. DE ALMEIDA)
c) para isolar o adjunto adverbial antecipado:
Depois de algumas horas de sono, voltei ao colégio. (R. POMPÉIA)
d) para isolar os elementos pleonástico ou repetidos: Ficou branquinha, branquinha.
Com os desgostos humanos. (O. BILAC)
3º) Emprega-se ainda a vírgula no interior da oração:
a) para separar, na datação de um escrito, o nome do lugar: Teófilo Otoni, 10 de maio de 1917.
b) para indicar a supressão de uma palavra (geralmente o verbo) ou de um grupo de palavras: Veio a velhice; com ela, a aposentadoria. (H. SALES)

1.2. Emprego da vírgula entre orações
ENTRE ORAÇÕES, emprega-se a vírgula:
1º) Para separar as orações coordenadas assindéticas: Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. (M. DE ASSIS)
2º) Para separar as orações coordenadas sindéticas, salvo as introduzidas pela conjunção e: Cessaram as buzinas, mas prosseguia o alarido nas ruas. (A. M. MACHADO)
Observação:
1ª) Separam-se por VÍRGULA as orações coordenadas unidas pela conjunção e, quando têm sujeito diferente. Exemplo: O silêncio comeu o eco, e a escuridão abraçou o silêncio. (G. FIGUEIREDO)
Costuma-se também separar por VÍRGULA as orações introduzidas por essa conjunção quando ela vem reiterada: Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! (O. BILAC)
2ª) Das CONJUNÇÕES ADVERSATIVAS, mas emprega-se sempre no começo da oração; porém, todavia, contudo, entretanto e no entanto, podem vir ora no início da oração, ora após um dos seus termos. No primeiro caso, põe-se uma VÍRGULA antes da conjunção; no segundo, vem ela isolada por vírgulas. Compare-se este período de Machado de Assis:
-- Vá aonde quiser, mas fique morando conosco.
aos seguintes:
-- Vá aonde quiser, porém fique morando conosco..
-- Vá aonde quiser, fique, porém, morando conosco.
Em virtude da acentuada pausa que existe entre as orações acima, podem ser elas separadas, na escrita, por PONTO-E-VÍRGULA. Ao último período é mesmo a pontuação que melhor lhe convém: -- Vá aonde quiser; fique, porém, morando conosco.
3ª ) Quando conjunção conclusiva, pois vem sempre posposto a um termo da oração a que pertence e, portanto, isolado por vírgulas: Não pacteia com a ordem; é, pois, uma rebelde. (J. RIBEIRO)
As demais conjunções conclusivas (logo, portanto, por conseguinte, etc.) podem encabeçar a oração ou pospor-se a um dos seus termos. À semelhança das adversativas, escrevem-se, conforme o caso, com uma vírgula anteposta, ou entre vírgulas.
3º) Para isolar as orações intercaladas: -- Se o alienista tem razão, disse eu comigo, não haverá muito que lastimar o Quincas Borba. (M. DE ASSIS)
4º) Para isolar as orações subordinadas adjetivas explicativas: Pastor, que sobes o monte,
Que queres galgando-o assim? (O. MARIANO)
5º) Para separar as orações subordinadas adverbiais, principalmente quando antepostas à principal: Quando tio Severino voltou da fazenda, trouxe para Luciana um periquito. (G. RAMOS)
6º) Para separar as orações reduzidas de gerúndio, de particípio e de infinitivo, quando equivalentes a orações adverbiais: Não obtendo resultado, indignou-se. (G. RAMOS) Acocorado a um canto, contemplava-nos impassível. (E. DA CUNHA) Ao falar, já sabia da resposta. (J.AMADO)
Observações:
1º) Toda oração ou todo termo de oração de valor meramente explicativo pronunciam-se entre pausas; por isso, são isolados por vírgula, na escrita;
2º) Os termos essenciais e integrantes da oração ligam-se uns com os outros sem pausa; não podem, assim, ser separados por vírgula. Esta a razão por que não é admissível o uso da vírgula entre uma oração subordinada substantiva e a sua principal;
3º) Há uns poucos casos em que o emprego da vírgula não corresponde a uma pausa real na fala; é o que se observa, por exemplo, em respostas rápidas do tipo: Sim, senhor. Não, senhor.

2. O PONTO (.)
1. O PONTO assinala a pausa máxima da voz depois de um grupo fônico de final descendente. Emprega-se, pois, fundamentalmente, para indicar o término de uma oração declarativa, seja ela absoluta, seja a derradeira de um período composto:
Nada pode contra o poeta. Nada pode contra esse incorrigível que tão bem vive e se arranja em meio aos destroços do palácio imaginário que lhe caiu em cima. (A. M. MACHADO)
2. Quando os períodos (simples ou compostos) se encadeiam pelos pensamentos que expressam, sucedem-se uns aos outros na mesma linha. Diz-se, neste caso, que estão separados por um PONTO SIMPLES.
Observação
O PONTO tem sido utilizado pelos escritores modernos onde os antigos poriam PONTO-E-VÍRGULA ou mesmo VÍRGULA.
A música toca uma valsa lenta. O desânimo aumenta. Os minutos passam. A orquestra se cala. O vento está mais forte. (E. VERÍSSIMO).
3. Quando se passa de um grupo a outro grupo de idéias, costuma-se marcar a transposição com um maior repouso da voz, o que, na escrita, se representa pelo PONTO-PARÁGRAFO. Deixa-se, então, em branco o resto da linha em que termina um dado grupo ideológico, e inicia-se o seguinte na linha abaixo, com o recuo de algumas letras.
Assim:
Lá embaixo era um mar que crescia.
Começara a chuviscar um pouco. E o carro subia mais para o alto, com destino à casa de Amâncio, que era a melhor da redondeza. (J. L. DO REGO)
4. Ao PONTO que encerra um enunciado escrito dá-se o nome de PONTO-FINAL.

3. O PONTO-E-VÍRGULA (;)
1. Como o nome indica, este sinal serve de intermediário entre o PONTO e a VÍRGULA, podendo aproximar-se ora mais daquele, ora mais desta, segundo os valores pausais e melódicos que representa no texto. No primeiro caso, equivale a uma espécie de PONTO reduzido; no segundo, assemelha-se a uma VÍRGULA alongada.
2. Esta imprecisão do PONTO-E-VÍRGULA faz que o seu emprego dependa substancialmente de contexto. Entretanto, podemos estabelecer que, em princípio, ele é usado:
1º) Para separar num período as orações da mesma natureza que tenham certa extensão: Todas as obras de Deus são maravilhosas; porém a maior de todas as maravilhas é a existência do mesmo Deus. (M. DE MARICÁ)
2º) Para separar partes de um período, das quais uma pelo menos esteja subdividida por VÍRGULA: Chamo-me Inácio; ele, Benedito. (M. DE ASSIS)
3º) Para separar os diversos itens de enunciados enumerativos (em leis, decretos, portarias, regulamentos, etc.), como estes que iniciam o Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
Art. 1º A educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fim:
a) a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família e dos demais grupos que compõem a comunidade;
b) o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais do homem;
c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional;
d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum
(...)
4. Valor melódico dos sinais pausais
Dissemos que a VÍRGULA, o PONTO e o PONTO-E-VÍRGULA, marcam sobretudo -- e não exclusivamente -- a pausa. No correr do nosso estudo, ressaltamos até algumas das suas características melódicas. É o momento de sintetizá-las:
a) o PONTO corresponde sempre à final descendente de um grupo fônico;
b) a VÍRGULA assinala que a voz fica em suspenso, à espera de que o período se complete;
c) o PONTO-E-VÍRGULA denota em geral uma débil inflexão suspensiva, suficiente, no entanto, para indicar que o período não está concluído.

III - Sinais que marcam sobretudo a melodia

1. Os DOIS PONTOS (:)
Os DOIS PONTOS servem para marcar, na escrita, uma sensível suspensão da voz na melodia de uma frase não concluída. Empregam-se, pois, para anunciar:
1º) uma citação (geralmente depois de verbo ou expressão que signifique dizer, responder, perguntar e sinônimos): Eu lhe responderia: a vida é ilusão... (A. PEIXOTO)
2º) uma enumeração explicativa:
Viajo entre todas as coisas do mundo:
homem, flores, animais, água... (C. MEIRELES)
3º) um esclarecimento, uma síntese ou um conseqüência do que foi enunciado: Ternura teve uma inspiração: atirar a corda, laçá-la. (A. M. MACHADO) Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta. (C. MEIRELES)
Observação:
Depois do vocativo que encabeça cartas, requerimentos, ofícios, etc. costuma-se colocar DOIS-PONTOS, VÍRGULA, ou PONTO, havendo escritores que, no caso, dispensam qualquer pontuação. Assim:
Prezado senhor: Prezado senhor.
Prezado senhor, Prezado senhor
Sendo o vocativo inicial emitido com entoação suspensiva, deve ser acompanhado, preferentemente, de DOIS-PONTOS ou de VÍRGULA, sinais denotadores daquele tipo de inflexão.

2. O PONTO DE INTERROGAÇÃO (?)
1. É o sinal que se usa no fim de qualquer interrogação direta, ainda que a pergunta não exija resposta: Sabe você de uma novidade? (A. PEIXOTO)
2. Nos casos em que a pergunta envolve dúvida, costuma-se fazer seguir de RETICÊNCIAS o PONTO-DE-INTERROGAÇÃO: _ Então?...que foi isso?...a comadre?... (ARTUR AZEVEDO)
3. Nas perguntas que denotam surpresa, ou naquelas que não têm endereço nem resposta, empregam-se por vezes combinados o PONTO-DE-INTERROGAÇÃO E O PONTO-DE-EXCLAMAÇÃO: Que negócio é esse: cabra falando?! (C. D. DE ANDRADE)
Observação:
O PONTO-DE-INTERROGAÇÃO nunca se usa no fim de uma interrogação indireta, uma vez que esta termina com entoação descendente, exigindo, por isso, um PONTO.
Comparem-se: -- Quem chegou? [= INTERROGAÇÃO DIRETA] -- Diga-me quem chegou. [= INTERROGAÇÃO INDIRETA]

3. O PONTO DE EXCLAMAÇÃO (!)
É o sinal que se pospõe a qualquer enunciado de entoação exclamativa. Emprega-se, pois, normalmente:
a) depois de interjeições ou de termos equivalentes, como os vocativos intensivos, as apóstrofes: Oh! dias de minha infância! (C. DE ABREU) Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? (C. ALVES)
b) depois de um imperativo: Coração, pára! ou refreia, ou morre! (A. DE OLIVEIRA)
Observação:
A interjeição oh! (escrita com h), que denota geralmente surpresa, alegria ou desejo, vem seguida de PONTO-DE-EXCLAMAÇÃO. Já à interjeição de apelo ó, quando acompanhada de vocativo, não se pospõe PONTO-DE-EXCLAMAÇÃO; este se coloca, no caso, depois do vocativo. Comparem-se os exemplos do item a.

4. As RETICÊNCIAS (...)
1. As RETICÊNCIAS marcam uma interrupção da frase e, conseqüentemente, a suspensão da sua melodia. Empregam-se em casos muito variados. Assim:
a) para indicar que o narrador ou o personagem interrompe uma idéia que começou a exprimir, e passa a considerações acessórias: -- A tal rapariguinha... Não digam que foi a Pôncia que contou. Menos essa, que não quero enredos comigo! (J. DE ALENCAR)
b) para marcar suspensões provocadas por hesitação, surpresa, dúvida, timidez, ou para assinalar certas inflexões de natureza emocional de quem fala: Fiador... para o senhor?! Ora!... (G. AMADO) Falaram todos. Quis falar... Não pude...
Baixei os olhos... e empalideci... (A. TAVARES)
c) para indicar que a idéia que se pretende exprimir não se completa com o término gramatical da frase, e que deve ser suprida com a imaginação do leitor: Agora é que entendo tudo: as atitudes do pai, o recato da filha... Eu caí numa cilada... (J. MONTELLO)
2. Empregam-se também as RETICÊNCIAS para reproduzir, nos diálogos, não uma suspensão do tom da voz, mas o corte da frase de um personagem pela interferência da fala de outro. Se a fala do personagem continua normalmente depois dessa interferência, costuma-se preceder o seguimento de reticências:
-- Mas não me disse que acha...
-- Acho.
--...Que posso aceitar uma presidência, se me ofereceram?
-- Pode; uma presidência aceita-se. (M. DE ASSIS)
3. Usam-se ainda as RETICÊNCIAS antes de uma palavra ou de uma expressão que se quer realçar: E teve um fim que nunca se soube... Pobrezinho... Andaria nos doze anos. Filho único. (S. LOPES NETO)

5. As ASPAS (" ")
1. Empregam-se principalmente:
a) no início e no fim de uma citação para distingui-la do resto do contexto:
O poeta espera a hora da morte e só aspira a que ela "não seja vil, manchada de medo, submissão ou cálculo". (MANUEL BANDEIRA)
b) para fazer sobressair termos ou expressões, geralmente não peculiares à linguagem normal de quem escreve (estrangeirismos, arcaísmos, neologismos, vulgarismos, etc.):
Era melhor que fosse "clown". (E. VERÍSSIMO)
c) para acentuar o valor significativo de uma palavra ou expressão:
A palavra "nordeste" é hoje uma palavra desfigurada pela expressão "obras do Nordeste" que quer dizer: "obras contra as secas". E quase não sugere senão as secas. (G. FREYRE)
Observação:
No emprego das ASPAS, cumpre atender a estes preceitos do Formulário Ortográfico: "Quando a pausa coincide com o final da expressão ou sentença que se acha entre ASPAS, coloca-se o competente sinal de pontuação depois delas, se encerram apenas uma parte da proposição; quando, porém, as ASPAS abrangem todo o período, sentença, frase ou expressão, a respectiva notação fica abrangida por elas:
"Aí temos a lei", dizia o Florentino. "Mas quem as há de segurar? Ninguém." (R. BARBOSA.) "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!" (M. DE ASSIS)

6. Os PARÊNTESES ( ( ) )
1. Empregam-se os PARÊNTESES para intercalar num texto qualquer indicação acessória. Seja, por exemplo:
a) uma explicação dada, uma reflexão, um comentário à margem do que se afirma:
Os outros (éramos uma dúzia) andavam também por essa idade, que é o doce-amargo subúrbio da adolescência. (P. MENDES CAMPOS)
b) uma nota emocional, expressa geralmente em forma exclamativa, ou interrogativa:
Havia a escola, que era azul e tinha
Um mestre mau, de assustador pigarro...
(Meu Deus! que é isto? que emoção a minha
Quando estas coisas tão singelas narro?) (B. LOPES)
Observação:
Entre as explicações e as circunstâncias acessórias que costumam ser escritas entre PARÊNTESES, incluem-se as referências a data, a indicações bibliográficas, etc.:
"Boa noite, Maria! Eu vou-me embora."
(CASTRO ALVES. Espumas Flutuantes, Bahia, 1870, p. 71)
2. Usam-se também os PARÊNTESES para isolar orações intercaladas com verbos declarativos: Uma vez (contavam) a polícia tinha conseguido deitar a mão nele. (A. DOURADO)
O que se faz mais freqüentemente por meio de vírgulas ou de travessões.

7. Os COLCHETES ( [ ] )
Os COLCHETES são uma variedade de PARÊNTESES, mas de uso restrito. Empregam-se:
a) quando numa transcrição de texto alheio, o autor intercala observações próprias, como nesta nota de SOUSA DA SILVEIRA a um passo de CASIMIRO DE ABREU: Entenda-se, pois: "Obrigado! obrigado [pelo teu canto em que] tu respondes [à minha pergunta sobre o porvir (versos 11-12) e me acenas para o futuro (versos 14 e 85), embora o que eu percebo no horizonte me pareça apenas uma nuvem (verso 15)]."
b) quando se deseja incluir, numa referência bibliográfica, indicação que não conste da obra citada, como neste exemplo: ALENCAR, José de. O Guarani, 2 ed. Rio de Janeiro, B. L. Garnier Editor [1864].
 
8. O TRAVESSÃO (--)
Emprega-se principalmente em dois casos:
a) Para indicar, nos diálogos, a mudança de interlocutor: -- Muito bom dia, meu compadre.
-- Por que não apeia, compadre Vitorino?
-- Estou com pressa. (J. LINS DO REGO)
b) Para isolar, num contexto, palavras ou frases. Neste caso, usa-se geralmente o TRAVESSÃO DUPLO: Duas horas depois -- a tempestade ainda dominava a cidade e o mar -- o "Canavieiras" ia encostando no cais. (J. AMADO)
Mas não é raro o emprego de um só TRAVESSÃO para destacar, enfaticamente, a parte final de um enunciado: Um povo é tanto mais elevado quanto mais se interessa pelas coisas inúteis -- a filosofia e a arte. (J. AMADO)
Observação:
"Emprega-se o travessão, e não o hífen, para ligar palavras ou grupo de palavras que formam, pelo assim dizer, uma cadeia na frase: o trajeto Mauá-Cascadura; a estrada de ferro Rio-Petrópolis; a linha aérea Brasil-Argentina; o percurso Barcas-Tijuca; etc." (Formulário Ortográfico).

OBSERVAÇÕES DE OUTRO GRAMÁTICO Luiz Antonio Sacconi
É preciso erradicar de vez a concepção errônea de que existe em alguns espíritos de que não se usa a vírgula antes de “e” em hipótese nenhuma. A título de mera curiosidade, eis cinco casos de emprego obrigatório da vírgula antes de “e”:
a) quando o ”e” equivale a “mas”, caso em que se classifica como conjunção adversativa. Exemplos:
“Quem cabritos vende, e cabras não têm, dalgures lhe vêm.” (e = mas)
Juçara fuma, e não traga. (e=mas)
Todo político promete, e não cumpre. (e=mas)
b) quando o “e” dá início a outra oração no período, sendo deferentes os sujeitos. Ex.:
Uma mão lava a outra, e a poluição suja as duas.
Os soldados ganham as batalhas, e os generais recebem o crédito.
c) quando entre um sujeito e outro aparece um termo imediatamente anterior separado por vírgulas. Ex.: A casa, muito antiga, e o edifício, moderníssimo, formavam visível contrate.
d) nas frases deste tipo: Dá-me um ponto de apoio, e suspenderei a terra e o céu (Arquimedes) Fala pouco e bem, e ter-te-ão por alguém!”
Essa vírgula é facultativa, dependendo da maior ou menor necessidade de ênfase que sequeira transmitir à segunda oração.
e) quando se deseja pequena pausa para em seguida dar ênfase ao termo imediatamente posposto ao “e”. Ex.:
Algumas coisas precisam ser esclarecidas, e logo!
Os jovens querem ser fiéis, e não perdem. Os velhos querem ser infiéis, e não podem.
A referida pausa, nesses casos, é tão deseja e significativa, que os autores modernos preferem substituir a vírgula pelo ponto. Ex.:
Algumas coisas precisam ser esclarecidas. E longo!
Em vez de vírgula e do ponto, pode aparecer nesse caso o travessão, que sugere pausa maior que a vírgula, porém. Ex.:
Um homem arrebata o primeiro beijo, suplica pelo segundo, pede o terceiro, toma o quarto, aceita o quinto – e agüenta todos os outros.
f) antes de vice-versa. Ex.: As orações causais não aceitam normalmente os artifícios que se empregam para as orações explicativas, e vice-versa.
g) antes do último membro de uma enumeração. Ex.: O Brasil é o maior produtor mundial de mamona; o México produz muita prata, petróleo e mercúrio, e o Chile é rico em cobre.
h) nos polissíndetos. Ex.: A criança chorava, e berrava, e gritava, e esperneava, e fazia todo o mundo louco!
i) antes das expressões E NEM, E NEM AO MENOS, E NEM SEQUER. Ex.: Ela chegou, e nem quis saber de nós.

CAIXA POSTAL
Num sobrescrito ou envelope e no cabeçalho das correspondências,usa-se a vírgula após cada elemento ou item. Ex.:
Nossa Editora,
Caixa Postal 1501
14 001, Ribeirão Preto, SP.
Depois de caixa postal não se usa a vírgula.

OBSERVAÇÕES DO PROFESSOR
No endereço, com rua e número da casa, a numeração não corresponde à ordem, porque se pulam os números, portanto, há, de fato, um aposto subentendido.
Exemplo:
Rua Marechal Deodoro, (casa de número) 155.
Casa de número: aposto subentendido.
Na numeração de apartamento, caixa postal, sala, seção o número corresponde a uma ordem seqüencial, por isso não precisa da vírgula.
Ex.: apartamento 67, caixa postal 25, seção 4, telefone 3622 9445, sala 7.
 
O poder da vírgula
Na Inglaterra, certa vez, um oficial foi condenado à morte. Seu pedido de perdão recebeu a seguinte sentença do rei:
Perdoar impossível, mandar para a forca!
Antes de a mensagem ser enviada ao verdugo, passou pelas mãos da generosa rainha,d que,compadecida da sorte do oficial, tomou de uma caneta e alterando a posição da vírgula, simplesmente mudou o significado da mensagem:
Perdoar,impossível mandar para forca!
Na antigüidade, um imperador estava indignado com a população de uma cidade, sem dúvida, por motivos políticos. O governador, então, passa-lhe um telegrama:
Devo fazer fogo ou poupar a cidade?
A resposta do monarca foi:
Fogo, não poupe a cidade!
O telegrafista, por questões humanitárias ou porque qualquer outro motivo, trocou a posição da vírgula. E a resposta ficou assim:
Fogo não, poupe a cidade!
 
EXERCÍCIOS
1. Certo/errado
1.(  ) Possuía lavouras, de trigo, linho, arroz e soja.
2.(  ) Bem-vindo sejas aos campos dos tabajaras, senhores da aldeia.
3.(  ) O aluno enlouquecido queria decorar todas as regras.
4 (  ) Ganhamos pouco; devemos portanto economizar.
5.(  ) O dinheiro, nós o trazíamos preso ao corpo.
6.(  ) Amanhã de manhã o Presidente viajará para a Bósnia.
7.(  ) A mocinha sorriu, piscou os olhinhos e entrou, mas não gostou do que viu.
8.(  ) A noite não acabava, e a insônia a encompridou mais ainda.
9.(  ) Embora estivesse agitado resolveu calmamente o problema.
10. (  ) A riqueza que é flor belíssima causa luto e tristeza.
11. (  ) Convinha a todos, que você partisse.
12. (  ) Uns diziam que se matou; outros que fora para Goiás.
13. (  ) No congresso, serão analisados os seguintes temas:
    a) maior participação da comunidade,
    b) descentralização econômico-cultural,
    c) eleição de dirigentes comunitários,
    d) cessão de lotes às fami1ias carentes.
14. (  ) Duas coisas lhe davam superioridade, o saber e o prestígio.
15. (  ) A casa não caíra do céu por descuido fora construída pelo major.
 
2. Pontue o período seguinte:
“Irás voltarás não morrerás “
a) com sentido de que não vai morrer:

R.

b) com sentido de que vai morrer:

R.

3. Coloque vírgulas no período abaixo se for necessário.
"O diretor de Recursos Humanos da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos declarou que não haverá demissões neste mês."
 
4) Seguem-se três trechos que devem ser pontuados. Reescreva-os:
a) Esta manhã como eu pensasse na pessoa que terá sido mordida pela viúva veio a própria viúva ter comigo achei-a na sala, com seu vestido preto de costume fi-la sentar no canapé sentei-me na cadeira ao lado e esperei que falasse conselheiro disse ela que acha que faça caso ou fico viúva nem uma coisa nem outra não zombe conselheiro não zombo minha senhora (Machado de Assis, Memorial de Aires)
R.

b) Não obstante o seu temperamento combativo e boêmio José do Patrocínio era profunda­mente religioso de regresso de Paris, trouxe ele um carro a vapor que seria o avô do auto­móvel desembarcado o monstro o jornalista montou na boléia e tomba aqui tropeça acolá foi encravá-lo inutilizado num buraco da Tijuca já sei por que foi disse Patrocínio de re­pente batendo na testa é porque não o batizei estava pagão o miserável e penalizado qual sem religião e com estas ruas sem calçamento não há progresso possível (Humberto de Campos).
R.

c) Certo dia morreu-lhe em casa uma pretinha sendo necessário para enterrá-la um atesta­do médico distraído o romancista saiu e ao chegar à cidade encontrou-se com o Barão de Capanema que lhe perguntou aonde ia Macedo contou-lhe o que ocorrera em casa e a sua atrapalhação para o enterro agora o pior terminou o médico é um médico para o atestado um médico perguntou Capanema espantado e sacudindo o braço aqui está um e riram-se os dois (Humberto de Campos)
R.


Conto Missa do galo - Machado de Assis

MISSA DO GALO              Machado de Assis
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.

— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.

— Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.

— Ainda não foi? perguntou ela.

— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.

— Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

— Não! Qual! Acordei por acordar.

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer Já disse que ela era boa, muito boa.

— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.

— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

— Justamente: é muito bonito.

— Gosta de romances?

— Gosto.

— Já leu a Moreninha?

— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

"Talvez esteja aborrecida", pensei eu.

E logo alto:

— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...

— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

— Já tenho feito isso.

— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.

— Que velha o que, D. Conceição?

    Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.

— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor.

A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:

— Mais baixo! mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou, trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.

— Eu também sou assim.

— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.

— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.

— Foi o que lhe aconteceu hoje.

—  Não, não, atalhou ela.

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela rnissa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:

— Mais baixo, mais baixo...

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver rnelhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.

— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.

— São bonitos, disse eu.

— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.

Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"

— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

— Já serão horas? perguntei.

— Naturalmente

— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.

— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.